“Somos sementes na terra, germinar e crescer é nossa missão. Carregamos a força de nossa ancestralidade como sementes grávidas da vida de nossos ancestrais. A Ação Griô veio descortinar essa vida, com toda história, sonhos, símbolos e saberes presentes nela, fazendo emergir para o tecido social práticas que definem nossa cultura, nosso ser em sociedade.” (Trecho da Carta da Regional Ventre do Sol - 2007)
O reconhecimento da oralidade como sistema organizado de produção e transmissão de conhecimentos construída ao longo do tempo, por culturas milenares e diversas, possibilita a inclusão e democratiza informações importantes na construção de uma sociedade com qualidade de vida, ética e equidade. Ainda assim, esse sistema ficou por muito tempo, submerso na invisibilidade, tendo sido subestimado seu potencial em detrimento do sistema europeu acadêmico letrado.
Para compreender o distanciamento da escola com o saber popular é importante a localização das raízes históricas que levaram a segregação entre cultura popular e erudita, identificando a forte influência do paradigma cartesiano e da necessidade de fragmentação neste contemplada.
O termo “cultura popular” surge gradativamente, ao longo de três séculos e ganha notoriedade no final da Idade Média, com o desenvolvimento industrial europeu e a conseqüente urbanização.
O popular na cultura desenvolve-se a partir de processos sócio-político-culturais que não podem ser negligenciados. Não é a toa que o popular representa valores de resistência das classes oprimidas que constroem saberes fora das instituições dominantes (no Brasil, fortemente marcado por práticas religiosas e festas populares com grande influência africana como o candomblé e a capoeira, ou subversivas, como o carnaval), contrapondo-se ao sistema escolar, jurídico, hospitalar, de origem européia.
“Movimentos sociais ocorridos desde 1500, como a Renascença, a Reforma, a Contra-Reforma, a Revolução Científica e o Iluminismo, provocaram uma exacerbada valorização da razão e do saber erudito.” (ROCHA, 2005).
Segundo Renato Ortiz (1992), não há consenso entre os estudiosos a respeito dos motivos que contribuíram para separação entre popular e erudito nos séculos XVI e XVII, até porque, de certo, a cultura Européia da elite se mistura com a cultura popular. Os eruditos tinham estreita relação com as manifestações praticadas pelo povo, participava de suas crenças, superstições e jogos, relacionavam-se com parteiras e bruxas, freqüentavam carnaval (entrudo), touradas, estalagens, cervejarias, tabernas, praças públicas e feiras livres interagindo com músicos, contadores de histórias, atores, dançarinos, artesãos, poetas.
Nesse período, os registros sobre as práticas populares, em geral realizados por sacerdotes (Jean-Baptiste Thiers – 1679, Henry Bourne – 1702) eram revestidos moralidade e hostilidade para com as manifestações populares, apontando erros e crendices das classes menos favorecidas.
A curiosidade por essas manifestações fez surgir uma classe de intelectuais que colecionava, sem preocupação com as pessoas, suas manifestações: os antiquários.
Essa convivência foi sendo modificada e se distanciando por ações corretivas do cristianismo católico (para conseguir submissão dos que exerciam práticas populares heréticas) e protestante (para combater crenças pagãs alimentadas pelo catolicismo); a constituição dos Estados nacionais, que, se por um lado se dedica, a prover as necessidade de seus súditos, por outro, cobra desses seus deveres (como os impostos) e não tem interesse em práticas que possam gerar protestos, como as de cunho popular; o renascimento e iluminismo do século XVIII, defendendo valores de universalidade e racionalidade do saber que devia ter o homem esclarecido; e os avanços das ciências biológicas e médicas.
“O mundo moderno, regido pela razão, argumenta-se, é mais iluminado que o mundo primitivo, místico, mítico e metafísico (Habermas, 1983). Através da supremacia da razão, seria possível ao homem moderno encontrar solos comuns que garantissem os ideais de igualdade e liberdade e, portanto, de emancipação humana. Deste modo, o projeto iluminista sustentou um ideal de encontrar solos comuns a todos, de maneira total e consensual, sobre os quais se pudesse construir e edificar valores, idéias e comportamentos universais (Harvey, 1992).” (MARQUES, 1999)
Resultante desses movimentos sociais surge uma nova classe de homens do saber, os “cidadãos da república das letras” (ROCHA, 2005), os eruditos: intelectuais patrocinados por instituições (principalmente as universidades, mantida pelas igrejas), nobres e mecenas que produziam conhecimentos a partir da observação e registro de práticas populares. Acreditavam ter o papel de interpretar a realidade, modificando sua relação à medida que mantinha certo distanciamento das manifestações populares para observá-las. Muitos se tornaram secretários de papa, historiadores e conselheiros de governantes e administradores, ganhando poder e status.
O romantismo do final do século XVIII e início do século XIX se contrapõem ao iluminismo, modifica o pensamento de igualdade ao valorizar o Eu, ou seja, a noção de individualidade e implanta uma busca pelo que é diferente, bizarro, privilegiando o sensível, indo de encontro ao consenso.
Ocorre de fato uma transformação do pensamento, a ponto de um autor como Peter Burke considerar ser esse o instante em que o conceito de cultura popular é inventado. Dentro deste contexto, alguns pensadores têm um papel preponderante, o filósofo alemão Herder, e os irmãos Grimm. (ORTIZ, 1992)
Herder critica a idéia de progresso, de continuidade histórica e de evolucionismo. Contrariamente aos iluministas, que valorizam o racionalismo e universalização do saber a favor do progresso (o que justifica as ações de superioridade Européia, principalmente França e Inglaterra), Herder introduz a idéia de relativismo. Considera que cada povo é uma totalidade orgânica, na qual as diferenças se harmonizam e integram ao todo, evoluindo através de ciclos e com destino próprio, que independe de outras nações.
Para Herder, a Alemanha do século XVIII vive seu ciclo de envelhecimento e senilidade e busca nas tradições medievais (ciclo de juventude e símbolo da ausência do poder centralizado e do domínio unidirecional da França, cultura que predominava sob o império germânico nesse século) o substrato de uma autêntica cultura nacional. Assim, é na busca por uma totalidade-nação alemã, na qual as diferenças se harmonizam e se integra que surge a discussão sobre a cultura popular, guardiã da consciência coletiva que interliga os diversos grupos de um país.
O romantismo valoriza então a cultura popular, direciona seu olhar para os costumes, as lendas, as crenças, os contos, a língua nacional, buscando reencontrar a unidade perdida. Povo, vale salientar, não está relacionado a classe popular, pobre, e sim a “um grupo homogêneo, com hábitos mentais similares, cujos integrantes são os guardiães da memória esquecida” (ORTIZ, 1992)
A contribuição trazida pelos irmãos Grimm está relacionada à metodologia de coleta de informações diretamente do povo, atribuindo impessoalidade a pesquisa e criando a possibilidade para um estudo mais sistematizado.
O positivismo do século XIX, acreditando na possibilidade de se fundar uma ciência positiva em todos os domínios do conhecimento, influencia os processos de estudo sobre as culturas populares, adicionando ao ideal romântico de identidade, critérios científicos. Essa nova forma de pensar as culturas populares vai ser conhecida como folclore. Define as lendas, costumes e crenças das classes menos influenciadas pela educação e pelo progresso como seu objeto de estudo.
Essas classes mantêm práticas primitivas e selvagens. Os folcloristas diferenciam primitivismo (testemunho da Tradição) de barbárie, mas para instrutores de escolas e empresários de uma sociedade industrial centrada no trabalho, as classes trabalhadoras são tidas como perigosas, imundas, transmissoras de doenças venéreas, etc.
Nossa sociedade é diretamente influenciada pelo pensamento dos que Gramsci chamou intelectuais orgânicos (instrutores de escolas públicas, políticos, administradores) que consideram como superior o conhecimento escrito, as ciência, as leis, que legitimam as classes dominantes; e como inferior, pequeno, menos importante, o lazer, as manifestações religiosas e festivas que legitimam as classes populares.
Não podemos considerar uma cultura popular e uma erudita apenas por sua origem. Tudo é um processo histórico, se transforma com o país e deixa – pode deixar – de ser exclusivo de uma parte da população. Se não, como entender a popularização do futebol, de origem inglesa e introduzida no início do século XX pela elite?
A oposição entre cultura popular e erudita é um produto de relações humanas construídas a partir de percepções que se modificaram ao longo do tempo – como a escrita e a leitura, antes restrita as classes dominantes – mas fez permanecer as contradições e os conflitos de interesses, deixando para a contemporaneidade a reflexão sobre como a opressão e a luta marcam essas características.
“As classes dominadas existem em relação com as classes dominantes, partilham um processo social comum, do qual não detêm o controle. A produção cultural, toda produção cultural, é o resultado dessa existência comum, é um produto dessa história coletiva, embora seus benefícios e seu controle se repartam desigualmente. Este sim é o cerne da questão da cultura em nossa sociedade. Desfaz-se assim a idéia frágil de que uma parcela tão fundamental da sociedade possa ser vista como uma realidade isolada no plano cultural” (SANTOS, 1994. p. 59)
Um povo que não se constrói com base em afetividade, não se reconhece protagonista de sua história, cidadão e cidadã inclusos e participantes do processo político educacional, cultural, social, econômico. Vínculos afetivos não se constroem por leituras escritas em livros por pessoas que nem conhecemos. Talvez por isso estejamos vendo um crescente de pessoas que saem das universidades/faculdades repletos de informações e desprovidos de conhecimentos de valores universais.
A Pedagogia Griô nasce como resultado de uma pesquisa realizada pelo Grãos de Luz e Griô em busca de re-significar sua prática sócio-educativa junto a comunidade, ao perceber que:
“não falava a própria língua e que não criava vínculo afetivo e de aprendizagem profunda com a sabedoria da cultura local. (...) ... foi pesquisar e reinventar métodos de educação, participação e encantamento do social, para valorizar a expressão da palavra, dos afetos, da memória, da história, das cantigas, das danças e dos rituais de tradição oral” (PACHECO, 2005).
A inspiração base para a pedagogia griô está da tradição da oralidade pela crença de que o conhecimento, a sabedoria é bem mais que a escrita e deve ser compreendido como tal, como enfatiza Líllian Pacheco ao citar o Mestre africano Tiemo Bokar Salif.
Seus conceitos e vivências se complementam pela educação biocêntrica, a educação para as relações étnico raciais positivas, a arte educação e a educação dialógica.
Tomando como base a Educação Biocêntrica, a Pedagogia Griô não desqualifica a formação intelectual ou tecnológica, mas prioriza a conexão com a vida, o desenvolvimento da afetividade, da percepção ampliada, da expansão da consciência, da ética para valores pró-vida, que propiciam uma profunda conexão entre a vida interior dos seres em comunhão com a natureza, o cosmo, mundo social e espiritual.
A Pedagogia Griô propõe a elaboração de um conhecimento capaz de integrar o sistema formal de ensino (escolas e universidades) e os saberes construídos por mestres e griôs das culturas populares, através de vivências afetivas e culturais que facilite o diálogo, a interação e a criação de vínculos entre pessoas de diferentes idades e grupos sociais e étnico-raciais.
Para sua prática, a figura do griô africano (caminhante que, sendo detentor de conhecimentos adquiridos na tradição oral, interliga as comunidades como contador de histórias, brincante e líder) foi reinventada e ganha o importante papel de liderar Caminhadas Griôs e se aproximar da comunidade, utilizando uma linguagem facilmente compreendida por esta e convidando-a a participar de “Roda da Vida e das Idades” e de “Rituais de Vínculo e Aprendizagem”, com cantigas, danças, versos, contação de histórias, produção e apreciação de artes e ofícios, onde realidade, ciência, arte e magia se integram e se complementam.
Em torno desta pedagogia que propõe o diálogo entre escola, educando e comunidade, vem se construindo uma Rede de educadores que busca romper com a educação bancária / conteudista e psicologizada e dá ao processo de ensino-aprendizagem uma conotação mais compromissada com a sociedade, possibilitando a inserção de uma escola transformada e transformadora na sociedade.
Em Alagoas, o Ponto de Cultura Caminhos do Rio São Francisco, coordenado pela Associação Amigos de Piaçabuçu - Olha o Chico, da qual sou integrante, faz parte dessa Rede e vem estabelecendo, com as escolas formais (municipal, estadual e particular), experiências com a Pedagogia Griô.
Para compreender o distanciamento da escola com o saber popular é importante a localização das raízes históricas que levaram a segregação entre cultura popular e erudita, identificando a forte influência do paradigma cartesiano e da necessidade de fragmentação neste contemplada.
O termo “cultura popular” surge gradativamente, ao longo de três séculos e ganha notoriedade no final da Idade Média, com o desenvolvimento industrial europeu e a conseqüente urbanização.
O popular na cultura desenvolve-se a partir de processos sócio-político-culturais que não podem ser negligenciados. Não é a toa que o popular representa valores de resistência das classes oprimidas que constroem saberes fora das instituições dominantes (no Brasil, fortemente marcado por práticas religiosas e festas populares com grande influência africana como o candomblé e a capoeira, ou subversivas, como o carnaval), contrapondo-se ao sistema escolar, jurídico, hospitalar, de origem européia.
“Movimentos sociais ocorridos desde 1500, como a Renascença, a Reforma, a Contra-Reforma, a Revolução Científica e o Iluminismo, provocaram uma exacerbada valorização da razão e do saber erudito.” (ROCHA, 2005).
Segundo Renato Ortiz (1992), não há consenso entre os estudiosos a respeito dos motivos que contribuíram para separação entre popular e erudito nos séculos XVI e XVII, até porque, de certo, a cultura Européia da elite se mistura com a cultura popular. Os eruditos tinham estreita relação com as manifestações praticadas pelo povo, participava de suas crenças, superstições e jogos, relacionavam-se com parteiras e bruxas, freqüentavam carnaval (entrudo), touradas, estalagens, cervejarias, tabernas, praças públicas e feiras livres interagindo com músicos, contadores de histórias, atores, dançarinos, artesãos, poetas.
Nesse período, os registros sobre as práticas populares, em geral realizados por sacerdotes (Jean-Baptiste Thiers – 1679, Henry Bourne – 1702) eram revestidos moralidade e hostilidade para com as manifestações populares, apontando erros e crendices das classes menos favorecidas.
A curiosidade por essas manifestações fez surgir uma classe de intelectuais que colecionava, sem preocupação com as pessoas, suas manifestações: os antiquários.
Essa convivência foi sendo modificada e se distanciando por ações corretivas do cristianismo católico (para conseguir submissão dos que exerciam práticas populares heréticas) e protestante (para combater crenças pagãs alimentadas pelo catolicismo); a constituição dos Estados nacionais, que, se por um lado se dedica, a prover as necessidade de seus súditos, por outro, cobra desses seus deveres (como os impostos) e não tem interesse em práticas que possam gerar protestos, como as de cunho popular; o renascimento e iluminismo do século XVIII, defendendo valores de universalidade e racionalidade do saber que devia ter o homem esclarecido; e os avanços das ciências biológicas e médicas.
“O mundo moderno, regido pela razão, argumenta-se, é mais iluminado que o mundo primitivo, místico, mítico e metafísico (Habermas, 1983). Através da supremacia da razão, seria possível ao homem moderno encontrar solos comuns que garantissem os ideais de igualdade e liberdade e, portanto, de emancipação humana. Deste modo, o projeto iluminista sustentou um ideal de encontrar solos comuns a todos, de maneira total e consensual, sobre os quais se pudesse construir e edificar valores, idéias e comportamentos universais (Harvey, 1992).” (MARQUES, 1999)
Resultante desses movimentos sociais surge uma nova classe de homens do saber, os “cidadãos da república das letras” (ROCHA, 2005), os eruditos: intelectuais patrocinados por instituições (principalmente as universidades, mantida pelas igrejas), nobres e mecenas que produziam conhecimentos a partir da observação e registro de práticas populares. Acreditavam ter o papel de interpretar a realidade, modificando sua relação à medida que mantinha certo distanciamento das manifestações populares para observá-las. Muitos se tornaram secretários de papa, historiadores e conselheiros de governantes e administradores, ganhando poder e status.
O romantismo do final do século XVIII e início do século XIX se contrapõem ao iluminismo, modifica o pensamento de igualdade ao valorizar o Eu, ou seja, a noção de individualidade e implanta uma busca pelo que é diferente, bizarro, privilegiando o sensível, indo de encontro ao consenso.
Ocorre de fato uma transformação do pensamento, a ponto de um autor como Peter Burke considerar ser esse o instante em que o conceito de cultura popular é inventado. Dentro deste contexto, alguns pensadores têm um papel preponderante, o filósofo alemão Herder, e os irmãos Grimm. (ORTIZ, 1992)
Herder critica a idéia de progresso, de continuidade histórica e de evolucionismo. Contrariamente aos iluministas, que valorizam o racionalismo e universalização do saber a favor do progresso (o que justifica as ações de superioridade Européia, principalmente França e Inglaterra), Herder introduz a idéia de relativismo. Considera que cada povo é uma totalidade orgânica, na qual as diferenças se harmonizam e integram ao todo, evoluindo através de ciclos e com destino próprio, que independe de outras nações.
Para Herder, a Alemanha do século XVIII vive seu ciclo de envelhecimento e senilidade e busca nas tradições medievais (ciclo de juventude e símbolo da ausência do poder centralizado e do domínio unidirecional da França, cultura que predominava sob o império germânico nesse século) o substrato de uma autêntica cultura nacional. Assim, é na busca por uma totalidade-nação alemã, na qual as diferenças se harmonizam e se integra que surge a discussão sobre a cultura popular, guardiã da consciência coletiva que interliga os diversos grupos de um país.
O romantismo valoriza então a cultura popular, direciona seu olhar para os costumes, as lendas, as crenças, os contos, a língua nacional, buscando reencontrar a unidade perdida. Povo, vale salientar, não está relacionado a classe popular, pobre, e sim a “um grupo homogêneo, com hábitos mentais similares, cujos integrantes são os guardiães da memória esquecida” (ORTIZ, 1992)
A contribuição trazida pelos irmãos Grimm está relacionada à metodologia de coleta de informações diretamente do povo, atribuindo impessoalidade a pesquisa e criando a possibilidade para um estudo mais sistematizado.
O positivismo do século XIX, acreditando na possibilidade de se fundar uma ciência positiva em todos os domínios do conhecimento, influencia os processos de estudo sobre as culturas populares, adicionando ao ideal romântico de identidade, critérios científicos. Essa nova forma de pensar as culturas populares vai ser conhecida como folclore. Define as lendas, costumes e crenças das classes menos influenciadas pela educação e pelo progresso como seu objeto de estudo.
Essas classes mantêm práticas primitivas e selvagens. Os folcloristas diferenciam primitivismo (testemunho da Tradição) de barbárie, mas para instrutores de escolas e empresários de uma sociedade industrial centrada no trabalho, as classes trabalhadoras são tidas como perigosas, imundas, transmissoras de doenças venéreas, etc.
Nossa sociedade é diretamente influenciada pelo pensamento dos que Gramsci chamou intelectuais orgânicos (instrutores de escolas públicas, políticos, administradores) que consideram como superior o conhecimento escrito, as ciência, as leis, que legitimam as classes dominantes; e como inferior, pequeno, menos importante, o lazer, as manifestações religiosas e festivas que legitimam as classes populares.
Não podemos considerar uma cultura popular e uma erudita apenas por sua origem. Tudo é um processo histórico, se transforma com o país e deixa – pode deixar – de ser exclusivo de uma parte da população. Se não, como entender a popularização do futebol, de origem inglesa e introduzida no início do século XX pela elite?
A oposição entre cultura popular e erudita é um produto de relações humanas construídas a partir de percepções que se modificaram ao longo do tempo – como a escrita e a leitura, antes restrita as classes dominantes – mas fez permanecer as contradições e os conflitos de interesses, deixando para a contemporaneidade a reflexão sobre como a opressão e a luta marcam essas características.
“As classes dominadas existem em relação com as classes dominantes, partilham um processo social comum, do qual não detêm o controle. A produção cultural, toda produção cultural, é o resultado dessa existência comum, é um produto dessa história coletiva, embora seus benefícios e seu controle se repartam desigualmente. Este sim é o cerne da questão da cultura em nossa sociedade. Desfaz-se assim a idéia frágil de que uma parcela tão fundamental da sociedade possa ser vista como uma realidade isolada no plano cultural” (SANTOS, 1994. p. 59)
Um povo que não se constrói com base em afetividade, não se reconhece protagonista de sua história, cidadão e cidadã inclusos e participantes do processo político educacional, cultural, social, econômico. Vínculos afetivos não se constroem por leituras escritas em livros por pessoas que nem conhecemos. Talvez por isso estejamos vendo um crescente de pessoas que saem das universidades/faculdades repletos de informações e desprovidos de conhecimentos de valores universais.
A Pedagogia Griô nasce como resultado de uma pesquisa realizada pelo Grãos de Luz e Griô em busca de re-significar sua prática sócio-educativa junto a comunidade, ao perceber que:
“não falava a própria língua e que não criava vínculo afetivo e de aprendizagem profunda com a sabedoria da cultura local. (...) ... foi pesquisar e reinventar métodos de educação, participação e encantamento do social, para valorizar a expressão da palavra, dos afetos, da memória, da história, das cantigas, das danças e dos rituais de tradição oral” (PACHECO, 2005).
A inspiração base para a pedagogia griô está da tradição da oralidade pela crença de que o conhecimento, a sabedoria é bem mais que a escrita e deve ser compreendido como tal, como enfatiza Líllian Pacheco ao citar o Mestre africano Tiemo Bokar Salif.
“A escrita é uma coisa, e o saber, outra. A escrita é a fotografia do saber, mas não o saber em si. O saber é uma luz que existe no homem. A herança de tudo aquilo que nossos ancestrais vieram a conhecer e que se encontra latente em tudo que nos transmitiram, assim como o baobá já existe em potencial em sua semente”.
Seus conceitos e vivências se complementam pela educação biocêntrica, a educação para as relações étnico raciais positivas, a arte educação e a educação dialógica.
Tomando como base a Educação Biocêntrica, a Pedagogia Griô não desqualifica a formação intelectual ou tecnológica, mas prioriza a conexão com a vida, o desenvolvimento da afetividade, da percepção ampliada, da expansão da consciência, da ética para valores pró-vida, que propiciam uma profunda conexão entre a vida interior dos seres em comunhão com a natureza, o cosmo, mundo social e espiritual.
A Pedagogia Griô propõe a elaboração de um conhecimento capaz de integrar o sistema formal de ensino (escolas e universidades) e os saberes construídos por mestres e griôs das culturas populares, através de vivências afetivas e culturais que facilite o diálogo, a interação e a criação de vínculos entre pessoas de diferentes idades e grupos sociais e étnico-raciais.
Para sua prática, a figura do griô africano (caminhante que, sendo detentor de conhecimentos adquiridos na tradição oral, interliga as comunidades como contador de histórias, brincante e líder) foi reinventada e ganha o importante papel de liderar Caminhadas Griôs e se aproximar da comunidade, utilizando uma linguagem facilmente compreendida por esta e convidando-a a participar de “Roda da Vida e das Idades” e de “Rituais de Vínculo e Aprendizagem”, com cantigas, danças, versos, contação de histórias, produção e apreciação de artes e ofícios, onde realidade, ciência, arte e magia se integram e se complementam.
Em torno desta pedagogia que propõe o diálogo entre escola, educando e comunidade, vem se construindo uma Rede de educadores que busca romper com a educação bancária / conteudista e psicologizada e dá ao processo de ensino-aprendizagem uma conotação mais compromissada com a sociedade, possibilitando a inserção de uma escola transformada e transformadora na sociedade.
Em Alagoas, o Ponto de Cultura Caminhos do Rio São Francisco, coordenado pela Associação Amigos de Piaçabuçu - Olha o Chico, da qual sou integrante, faz parte dessa Rede e vem estabelecendo, com as escolas formais (municipal, estadual e particular), experiências com a Pedagogia Griô.
Dalva de Castro, 2009.
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